O Munchausen Português

 

Quem julga que uma possível estagnação mental portuguesa é um fenómeno recente, está muito enganado. Efectivamente, esta estagnação vem acompanhando este povo – pelo menos – desde a segunda metade do século XVI. Assim o afirmava António José Saraiva em 1961 (in O Português e o Universalismo). Contudo, muito antes disso, já o dizia Camões:

“Não Mais, Musa, não mais, que a lira tenho

Destemperada, e a voz enrouquecida,

E não do canto, mas de ver que venho

Cantar a gente surda e endurecida.

O favor com que mais se acende o engenho

Não no dá a pátria, não, que está metida

No gosto da cobiça e na rudeza

De uma austera, apagada e vil tristeza.”

(Os Lusíadas, canto X, 145).

Ainda a este respeito, Saraiva refere que o homem português é um náufrago que voga ao sabor de um sebastianismo que se revela pela ausência de iniciativas que contrariem o seu Pathos.

Para Saraiva, “Os Portugueses não podem ser um recanto escuro, uma falha na inteligibilidade do Universo” mas põe-se a questão de saber se serão tão explosivos como alega Keyserling (Keyserling apud António Quadros, O Homem Português, 1984):

“Na sua Análise Espectral da Europa, Hermann de Keyserling apontou como primeiro traço característico do português a sua explosividade, lembrando que todos os altos feitos e gestos portugueses foram verdadeiros fenómenos de explosão, navegadores lançados em volta do Planeta como balas de canhão.”

Ou seja, com alguma ironia e tecnologia adequada, poderíamos ter antecedido em mais de quatrocentos anos os programas espaciais tripulados soviético e norte-americano! Fantástico!

É curioso verificar que, desde a perspectiva de falta de persistência, de tristeza, de inveja, de vaidade susceptível, de intolerância e de espírito de imitação, a que se refere Teixeira de Pascoaes, até ao síndroma provinciano, reflectindo-se em cultura estrangeirada, mimetismo cultural, decadência do espírito criador, desnacionalização ou perda da consciência superior da nacionalidade, avançados por Fernando Pessoa, até à curiosa hipertrofia mítica, de Francisco da Cunha Leão, temos sido acariciados por todo o tipo de classificações mais ou menos simpáticas, sem que daí tenha resultado o mais leve despertar de um autêntico lusitano torpor.

Todavia, a mais deliciosa alegoria da portugalidade surge-nos sob a imagem de um polvo:

“O português é um castelhano sem ossos (…) O castelhano efectivamente, é todo em ossos, esquelético, Tem qualquer coisa de lagosta… O português, ao contrário, é como o polvo… Mas que a lagosta se acautele antes de lutar com o polvo… Pode sentir-se, de repente, nas trevas a gritar com aflição, desorientada: que me terá acontecido? Nada… foi o polvo que a enredou, que a escamoteou, que a perdeu…” (Miguel de Unamuno apud António Quadros, idem).

Obtemperando, surgem-nos explicados claramente os acontecimentos de São Mamede, Aljubarrota e Montes Claros. A tropa portuguesa – em formação tentacular – aproveitou-se de um deslize da lagosta espanhola (primeiro galega), para conquistar a independência.

Todas estas maravilhosas perspectivas que me colocam algures entre o surdo empedernido do nosso poeta maior e o molusco de um expoente filosófico espanhol (Basco, por sinal) transmitem-me uma certa sensação de mal-estar, que se agrava substancialmente quando confrontado com a necessidade de falar sobre o tão badalado Acordo Ortográfico.

Por um lado, tenho aqueles que pensam que “A decadência da linguagem e a sua perversão anunciam, com o declínio do homem, o declínio de uma civilização (…) A decadência de uma linguagem mão é tanto uma doença como um sintoma (…) A palavra ainda tem significado, mas sentido já não” (Bigotte Chorão, A Literatura Portuguesa, 1984;  & Ernst Junger apud Chorão, idem); no outro extremo, leio Mia Couto (Ciberdúvidas, 1997) que escreve “A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia (…) vamos criando uma língua apta para o futuro, veloz como a palmeira, que dança todas as brisas sem deslocar seu chão. Língua artesanal, plástica, fugidia a gramáticas”.

Ou seja, para quem não é linguista mas se serve desta em mais do que um contexto puramente comunicacional (leia-se informações e metadados), vejo-me na contingência de ter de defender, de atacar, ou pura e simplesmente de me abster sobre as formas futuras da minha língua materna.

Confrontado com a questão: serei o tal polvo, utilizando as técnicas de fuga e dissimulação deste inteligentíssimo animal para escapar à rigidez de uma opinião?

Pelo contrário, serei eu o projéctil balístico apontado a detractores ou a defensores da mudança, a todos crivando de bombásticas respostas acerca do que deveria tornar-se o futuro “Bom Português”? E porque não o “Bom Brasileiro” ou o “Bom Angolano”, etc.?

Confesso que não quero ser nem uma coisa nem outra. Não estou à altura de dizer se a Lusofonia é afinal um mero conector linguístico entre povos, gerado por uns, burilado por outros e apropriável por todos.

Prefiro sentir-me um Europeu lusotropicalizável  que não escapa à perspectiva incontornável de que as raízes  do seu logos estão associadas a um outro país que não vive estes dilemas linguísticos.  Um país, curiosamente, que deu origem a uma cultura universal, mas cuja língua – na sua totalidade – só é falada pelos seus habitantes: a Grécia.

Vivo imerso na tal cultura estrangeirada a que se refere Pessoa e ainda não consegui perceber se a língua portuguesa é uma manifestação de algo que está a um nível superior – um logos de origem lusitana, mas superiormente enriquecido por insumos universais.

Enquanto não encontro resposta, utilizando a boleia proporcionada pela alegoria da bala de canhão, prefiro saltar fora deste tema tornando  lusitano o aventuroso Barão de Munchausen que não sendo bala de canhão, desta se serviu para escapar ao cerco feito à sua cidade pela Sublime Porta Otomana, leia-se Acordo Ortográfico.

João de Bianchi Villar

 

Munchausen

3 pensamentos sobre “O Munchausen Português

  1. Agradeço a crítica apresentada. Elaborei uma resposta específica.

    Com todo o respeito também, seria interessante saber qual a sua posição e argumentos sobre a questão colocada no Artigo: Será legítimo falar de Língua Portuguesa sem nos debruçarmos também sobre Cultura Portuguesa? E porque não tantas Línguas e Culturas, quantos os paises que utilizam a expressão oficial portuguesa.

    Se eu seguisse o seu raciocínio, e porque o Orlando não se pronuncia específicamente sobre a questão seria tentado a sofismar: O Orlando não se pronuncia sobre o Acordo; quem não se pronuncia é a favor; logo, o Orlando consente.

    Parece-lhe correcto este raciocínio? Um Abraço.

  2. Cada língua tem o seu sabor e génio. Quando comecei a aprender o idioma de Shakespeare achava difícil a pronúncia, porque falava mais o idioma de Camões. Lembro-me que uma vez tive prémio porque não falei senão o português durante uma semana, sem usar nenhuma palavra da minha língua da terra, concani. Achei difícil ler certas palavras. Lembro-me como na aula de inglês tive de saltar mares para pronunciar as palavras, “scene”, body”, “stop, thief!”. Ouvia pouco o inglês. Os maiores falavam inglês se quisessem esconder qualquer segredo. Reflectia eu como é qua a palavra “sugar” se pronuncia; porque seria “but”, mas “put”?… São perguntas sem respostas, questões sem soluções…
    Isso me fazia lembrar o que um professor me disse uma vez: “nas línguas não vale a filosofia”… Por isso acho, que é melhor aperfeiçoar o conhecimento da língua, como também aprender como escrever. O Acordo Ortográfico não deve introduzir nenhuma discriminação entre os países lusófonos. Que seja científico, válido para Portugal e para todas a nações lusófonas. Sou também do mesmo parecer no tocante ao inglês britânico e inglês Americano: “endeavor” ou “endeavour”, “realize” ou “realise”… Para que esta diferença na escrita? Sotaque vai sempre diferir dum lugar para o outro… Se a gramática é mesma, então a língua não pode ser diferente.
    Dr.Ivo da C.e Sousa

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